Ana Mae Barbosa
24/01/2008
Para possibilitar o acesso à Cultura e para tornar as pessoas mais inteligentes. Vejamos a primeira afirmação. Em um país como o Brasil onde a arte é pouco divulgada (com exceção da música popular e do cinema) de que forma um cidadão pode desfrutar de seu direito de acesso à cultura? Não só é pouco divulgada como, em geral, quando é divulgada isso é feito em linguagem hermética. A internet tem democratizado o acesso a museus e exposições e tem dado visibilidade a trabalhos de muitos artistas, mas ainda não confere reconhecimento ao artista. Para alguém ser reconhecido como artista é necessário participar de exposições em museus, bienais, galerias, sair na Bravo, etc. Enfim, ser abençoado por algum curador. É com os curadores que está o poder de designar alguém como artista. A maioria deles é homem, vem das classes altas e é agente nacional do código hegemônico europeu e norte-americano branco.
Quantas mulheres já foram curadoras da Bienal? Rigorosamente, duas que quiseram inovar, fizeram um trabalho coerente com suas teorias e foram massacradas pelos críticos homens. A administração das Artes vive nas trevas no Brasil. Novamente meu termômetro é a Bienal de São Paulo, em que foi reeleito um presidente depois de surgirem dúvidas sobre seu procedimento ético. Quem elegeu foi um conselho de ricos, pois o Conselho da Bienal se transformou em escada social para novos ricos, ou melhor, um meio desaparecerem na Revista Caras. A proposta curatorial salvadora da próxima Bienal é isomórfica: um retorno, fora de lugar, ao conceitualismo movido por oportunismo. Tudo isto com dinheiro do Governo, o meu e o seu imposto, porque os ricos do Conselho não abrem a bolsinha.
O que já tem sido feito para melhorar o acesso à arte para a grande massa? E o que ainda pode ser feito? Nos últimos anos, os museus, centros culturais e mega-exposições têm se preocupado em criar departamentos educacionais, contratando educadores para facilitar a mediação entre Arte e Público. A qualidade é variável e o empenho também. Muitas vezes, o educativo existe na instituição para trazer público, para inflar a estatística, para mostrar ao patrocinador que numerosas pessoas viram a exposição. Em geral, reside aí o empenho em trazer levas de escolares às Bienais de Arte e do Livro. Outras instituições realmente se interessam em dar acesso à Arte a todas as classes sociais. Quando dirigi o MAC/USP fui criticada por dar ênfase ao educativo quando só o Museu Lasar Segall e o próprio MAC investiam na Arte/Educação. O trabalho foi tão frutífero que operou uma transformação no ensino da Arte nas escolas de todo o Brasil e trouxe a imagem da Arte para a sala de aula. A ampliação do educativo das instituições de Arte, a pesquisa para verificar os resultados da ação, a análise e sistematização a partir de publicações são iniciativas que ajudariam na descoberta de outras possibilidades. Principalmente, nos ajudariam a analisar que tipo de mediação praticamos nos muitos museus do Brasil, e com que conceitos de cultura estamos operando. Queremos convencer que os valores da burguesia são verdades imutáveis ou queremos que cada pessoa, independente do grupo cultural a que pertence, seja capaz de formular valores estéticos? Somos convencionais, populistas, messiânicos ou construtores de significados? Há de tudo isto nos educativos de museus e centros culturais no Brasil e há excelentes trabalhos que constroem diálogos entre a Arte, a Cultura e a Subjetividade dos observadores. Um país só pode ser considerado culturalmente desenvolvido se tiver uma produção de alta qualidade e uma compreensão desta produção também de alta qualidade. No Brasil, precisamos democratizar a compreensão da Arte e da Cultura. Resta-me agora argumentar que a Arte torna a pessoa mais inteligente. Para isto recorrerei à consistente metapesquisa de James Catterrall, Critical Links: Learning in the Arts and Student Social and Academic Development. O pesquisador da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, examinou mais de 60 pesquisas acerca da contribuição das Artes para a educação de crianças de cinco anos até a adolescência. O maior número de estudos se refere à contribuição da música, seguido pelo teatro. Infelizmente, Catterrall encontrou apenas quatro estudos demonstrando a importância das Artes Visuais para o desenvolvimento da capacidade de aprender outras disciplinas. Foi no campo de investigações sobre o raciocínio espacial que Catterrall encontrou quase 300 estudos científicos nos quais podemos nos basear para defender a idéia de que as Artes Visuais desenvolvem o raciocínio espacial e, a partir dele, também desenvolvem habilidades específicas para ler, escrever e falar a linguagem verbal. Precisamos de mais pesquisas em relação ao papel das Artes Visuais na qualidade da performance acadêmica dos alunos. A grande ênfase na importância do ensino das artes para o desenvolvimento dos processos de cognição – não só em Arte mas em todas as áreas de conhecimento – se deve aos resultados de uma pesquisa norte-americana que mostrou que, por uma década, os alunos que obtiveram os dez primeiros lugares nos exames equivalentes ao ENEM no Brasil haviam cursado pelo menos duas disciplinas de Arte. Enquanto nos Estados Unidos, os alunos do ensino médio escolhem as disciplinas que vão cursar, no Brasil não há liberdade de escolha e o currículo parece prescrição médica. Portanto, nem se poderia fazer uma pesquisa destas por aqui. A pesquisa americana despertou o interesse dos pesquisadores em demonstrar as possibilidades de transferência de aprendizagem, quando a Arte é aprendida mobilizando-se processos cognitivos, da imaginação ao planejamento. A pesquisa Artes Visuais: da exposição à sala de aula comprova que os professores que buscam os museus e centro culturais como laboratórios de pesquisa visual para seus alunos o fazem sabendo da importância da Arte para o desenvolvimento dos processos cognitivos em geral. Foi esta convicção que os levou a conseguir adesão dos colegas de história, português, matemática, informática para trabalhar interdisciplinarmente a partir das Artes Visuais. Eles reafirmaram a eficiência da Arte para desenvolver formas sutis de pensar, diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular hipóteses e decifrar metáforas.
Rudolf Arnheim foi um dos expoentes da idéia de Arte para o desenvolvimento da Cognição. Sua concepção se baseia na equivalência configuracional entre percepção e cognição. Para ele perceber é conhecer. Ulric Neisser e Nelson Goodman colaboraram com esta visão. Arrisco a afirmar que o Projeto ZERO que Goodman iniciou e financiou pessoalmente foi a maior fonte de pesquisas sobre a Cognição em Arte e a Cognição através da Arte.
Arte depende de julgamento e obriga a poucas regras que precisam ser conhecidas antes de se ousar desafiá-las. Estas regras são para Arnheim a gramática visual subjacente a todas as operações envolvidas na cognição como recepção, estocagem e processamento de informação, percepção sensorial, memória, pensamento, aprendizagem, etc. Acusado de formalista no início dos anos oitenta, na efervescência do Pós-Modernismo, Arnheim vem sendo recuperado pelos cognitivistas pois sua gramática visual não se comprazia apenas na forma, mas derivava de uma negociação contextual mental e se dirigia ao contexto perceptual. A princípio, se trabalhava a percepção desta gramática visual só a partir da percepção do mundo fenomênico. Nos anos 80, precisamente a partir de 1983 (Festival de Inverno de Campos do Jordão), o esforço cognitivo de apreender a imagem da Arte ampliou o campo de ação do ensino da Arte, da percepção visual, da interpretação da linguagem visual a partir da cultura que a produziu. A imagem produzida por artistas entrou na escola para ampliar o sentido cognitivo da Arte.
Cognição é o processo pelo qual o organismo se torna consciente de seu meio ambiente. A Educação promovida pelas ONGs democráticas, de gestão comunitária, nos alertam acerca da importância da arte para a tolerância à ambigüidade e a exploração de múltiplos sentidos e significações.
Esta dubiedade da Arte a torna valiosa na Educação. Arte não tem certo e errado. Tem o mais ou o menos adequado, o mais ou o menos significativo, o mais ou o menos inventivo. Nós todos que trabalhamos com Arte seriamos menos inteligentes se estivéssemos longe Dela.
Ana Mae Barbosa é Professora Titular aposentada da USP, onde atua no Doutorado em Arte/Educação na ECA. Mae também é consultora do Canal Futura e da área de Formação da Petrobrás Cultural.
Foi presidente da International Society of Education through Art (90-93) e Diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP (87-93). Publicou 19 livros sobre Arte e Arte/Educacão, entre eles Arte/Educação Contemporânea (Cortez, 2006) e Artes Visuais : da exposição à sala de aula (com Rejane Coutinho e Heloisa M Sales .EDUSP, 2005). E recebeu prêmios como o Grande Prêmio de Crítica da APCA e o prêmio Edwin Ziegfeld nos Estados Unidos.
Fonte: http://www.blogacesso.com.br/?p=91